quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A CONSCIÊNCIA E O CÉU

Luanda disse-me que estava cansada, que não agüentava mais a quimioterapia e quatro horas de ônibus por dia.

Ela mora na periferia e tem de ir ao Hospital das Clínicas para realizar o tratamento.

Tem só dezenove anos.

“Tenho dois sonhos: ir a Campos do Jordão e ao Rio de Janeiro, nem que seja pra dormir na praia. O médico me proíbe de tudo, mas eu vou.”

Naquela manhã de sábado acordei sem ideal nem esperança, parafraseando Pessoa. Não me entusiasmava o trabalho e meus planos para o futuro pareciam fenecer. Sabia, no entanto, que aquilo era uma ilusão de ótica. A infinita vida se escondia em algum lapso meu. A abundante vida devia estar ali, ao meu lado, mas, por acomodação, não reconhecia seu vigor.

Aprendera, nos parcos anos de minha existência, que o ponto de vista define o objeto. Aprendera que meu viés define meu mundo; mesmo que esteja no arrabal del infierno, como escreveu Borges, posso desfrutar a paz, se tiver olhos para vê-la.

Decidira, então, naquele sábado, dedicar-me a alguém. A dedicação ao outro quebra a casca ilusória denominada eu. Baktin escreveu que a existência do “eu” é ilusória - não passa de uma criação afetada do Romantismo. Expandindo o eu, pensei, logro um novo viés, capaz de reviver ideais e renovar planos.

Dirigi-me, então, à casa de uma conhecida, a poucos metros de onde resido. Levei minha companheira, a guitarra espanhola, acendedora de ternuras e acalentos a corações cansados.

Apesar de minhas boas intenções, não fui bem recebido. Cheguei sem avisar em hora inoportuna: problemas familiares agitavam a tranquilidade doméstica. Por instantes pensei em desistir, desculpar-me e retirar-me. Entretanto, respirei fundo e pedi paciência a mim mesmo. Afinal, a desordem do mundo não precisa de desertores. Dessa maneira, mantive-me imperturbável, aguardando o momento em que seria ouvido – contudo descobri que, antes, necessitava ouvir.

Como dizia, ela tinha apenas dezenove anos, e já podia ser o fim. Assim contou-me sentando-se a meu lado, sem rogar compaixão ou compreensão. Disse-me do fim de sua história como cotidianamente lamentamos o adiamento de uma viagem no feriado. Tal ausência de sentimentalismo comoveu-me. Envergonhei-me. O que eu considerava como dificuldade até aquele momento tornou-se “sopa” - como gostava de referir-se Murilo Mendes ao que era fácil e simples.

Seus dois sonhos não eram impossíveis para mim. Na verdade, já se tornavam dispensáveis em minha gama de opções. Na semana anterior me haviam convidado para ir a Campos. Neguei, alegando compromissos inadiáveis. Compromissos, de fato, havia, mas o que impulsionou minha negativa foi a tonalidade burguesa daquela cidade, a qual me enfastiava de antemão. Quanto ao Rio, gostava da cidade na proporção inversa com que desgostava do trajeto para lá chegar. E recebera convites, insistentes e aconchegantes, de um grande amigo que lá reside; não obstante, minha acomodação não me permitira mover uma palha em favor de sua hospitalidade. Envergonhava-me conhecer os modestos sonhos de Luanda. O quanto eu tinha para agradecer e para me alegrar!

E ela tinha uma coragem, uma vontade de viver! Intimorata, era indiferente aos canos que lhe perpassavam o peito e veias. Seus cabelos caíam e por isso ornava-se com um elegante lenço. Eu tinha lá meus medos infantis – reconhecia-os assim naquele momento. Medo de perder o controle, medo de perder o juízo. Percebi que andava acolhido pela segurança de meu lar, de meu trabalho e de minha saúde.

Semanas atrás, um aluno meu tentara sacar a própria vida por motivos banais. Triste ingrato. Por que não foi visitar um paciente com câncer ou Aids? Por que não se aconchegou às história de um Manuelzão – personagem de Guimarães Rosa – que poderia ter sido abandonado em um asilo? Por que não acalentou um Miguilim, possivelmente esquecido em um orfanato? Por que não se permitiu conhecer a vida em seu limite, para avaliar a própria insensatez?

Luanda me ensinava a perceber. Ensinava-me a refletir. De fato, revirava meu viés engessado.

Ano passado fora visitá-la no Hospital do Câncer, recém inaugurado na Av. Dr. Arnaldo. Da elevada janela, avistei o céu da cidade. Ainda estava sob ele ou o transgredia? Curioso paradoxo, talvez síntese da vida neste mundo: do quarto de internação cancerígeno contemplei a mais linda vista da cidade; o verde e residencial Pacaembu estabelecia contraponto solene com os edifícios vizinhos. Lá do alto nossa cidade era serena e pacífica, tal como as fotografias de satélite tiradas da Terra: ainda é o lindo planeta água, donde tudo parece harmônico e fluido.

Sob o céu da cidade muitos são os vieses, os modos de ser e de sentir. Parece-me que quanto mais alto subirmos, mais ampla nossa visão e, por conseguinte, maior capacidade de ver harmonia, sentido e coerência na vida. Ao dedicar-me ao outro sinto que subi, expandi meu eu. Ao visitar a convalescente nas alturas de um edifício, dedicando afeto, encontrei a conjugação entre o que se elevava em meu interior e a harmonia da cidade em meu exterior.

Cedi a novo convite a Campos. Convidei Luanda e alegra-me o coração a possibilidade de que possa realizar seu sonho. Tenho despertado com ideal e esperança. É como se visse a cidade do alto, do céu, mesmo estando sob ele – pois o céu estende-se infinitamente, tanto quanto nossa consciência pode expandir-se.



Rodrigo da Rosa