terça-feira, 16 de dezembro de 2014

TENHO O MELHOR ALUNO DO MUNDO

                                       

            Como professor do Ensino Regular, de um sistema de ensino, que, digo, está falido, não há como ser ouvido pela maior parte dos alunos. Nossa fala é absolutamente desprezada, assim como o televisor lá da sala, que, do quarto, esquecemos de desligar. É assim que um professor se sente muitas vezes. A aula expositiva acabou, ou deve ter acabado na era digital da compra desesperada e da cooptação sem fim pelos meios publicitários, em cada tela, em cada esquina, por todos os lugares onde a vista alcança.
            Mas tenho minha glória uma vez por semana, quando vou à casa de R lecionar espanhol. Ele é o melhor aluno do mundo. Pasmem, ouve o que digo. Pasmem mais uma vez: concentra-se nas atividades. Pasmem novamente: memoriza os conteúdos e avança continuamente em habilidades e competências.
            R está tetraplégico há quatro anos. Tem 18 anos. É o adolescente que mais tem razão para reclamar. Mas não reclama. Visito-o semanalmente. R poderia tecer um rosário de lamentações. Mas não o faz. R quer aprender. Com alegria, quer aprender.
            Ele é o melhor aluno do mundo. Que me importa que o sistema disciplinar esteja falido? R me ouve. Que me importa que a juventude esteja cooptada pela publicidade, redes sociais e tenha se esquecido do conhecimento? R quer aprender. R me motiva a ser professor.
            Quantos anos esperei, querido R, para sentir esse prazer que sinto agora como professor?
            A vida no limite tem suas surpresas. Quando eu desistia de ser professor, eis que surge um aluno de verdade. Quando preparar aula havia se transformado em um exercício de frustração, a esperança volta a me acenar com seus dedos abacate.


Rodrigo da Rosa, 29.10.2014

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

SENTENÇAS MORTAIS


 

Uma notável professora da Universidade de São Paulo disse em sua aula sobre educação especial que um aluno com Síndrome de Ásperger NUNCA vai entender a linguagem com sentido figurado. A notável doutora contou-nos que, quando estudante de ensino fundamental, certa professora sentenciava diariamente que “as meninas daquela região ou seriam putas ou ladras.”

Uma série de psiquiatras do município de São Paulo diz continuamente para pais que o Transtorno do Espectro Autista é irreversível e que suas crianças nunca terão “vida social” normal. A medicina reconheceu publicamente que o autismo é reversível.

Um grande amigo meu consultou um psiquiatra especialista e foi diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo. Em seguida, começou a consultar-se com um terapeuta especializado nesse transtorno. O terapeuta lhe disse que “ele é doente” e que, certamente, não fez mestrado porque “não tem capacidade”. Disse-me meu amigo que naquele momento entendeu porque o ódio é potência para grandes mudanças. Abandonou o terapeuta e foi atrás do mestrado. Quer esfregar no nariz do especialista a titulação. Eu sugeri que lhe convidasse para a defesa da dissertação, somente. Já seria um prato frio.

Tive um aluno com Síndrome de Duchen. O médico lhe deu um ano de vida. Passado um ano, como o menino não bateu as botas, o médico lhe deu mais 9 meses. Passados os nove meses ainda estava vivo, então o médico disse que “do ano que vem não passaria”. Nesse ínterim saí da escola. Não ouvi comentário do falecimento do menino até hoje.

Tivemos uma gatinha chamada Mika. Mamãe, por descuido, esmagou a cabecinha da coitada. Levamos à veterinária. A médica disse: quer sacrificar ou vai querer comprar remédio caro e fazer exame caro? Nós dissemos: deixe ela com a gente. A gatinha viveu mais quatro anos.

Os exemplos acima, e inumeráveis que todos nos deparamos cotidianamente nos trazem um fato: alguns médicos e educadores, além de titulação de especialistas mega-ultra também querem alcançar o título de adivinhos e de profetas.

Todo respeito à medicina e à ciência. Repito, respeito à ciência.

Dirão que há dados. Que há probabilidades. Dirão que estudos há, inumeráveis, atestando tal ou qual estado, possibilidade de tal e tal desenvolvimento da enfermidade, transtorno, síndrome, o que seja.

Respondo que sim, que estão certos. Repondo que probabilidade não é verdade. Possibilidade não é certeza. Estudo do passado, de casos do passado não pode ser profecia do futuro, atestado de óbito para o presente. Responder-me-ão que cada caso é um caso, mas...

Quer matar um pai no presente é dizer que seu filho NUNCA vai ler, NUNCA vai caminhar, NUNCA vai melhorar, NUNCA vai avançar, NUNCA vai ter vida “normal”.

Ninguém, nem o Papa, nem Pai de Santo, nem médico de Sorbone consegue prever a vida de um ser vivo! E não tem o direito de usar sua posição de poder para predizer o futuro. O que é, no mínimo, ridículo.

Dito isso, profissionais da saúde e da educação, cuidado com as sentenças mortais, pronunciadas com o desdém da arrogância. Aquelas que não levarem suas vítimas a óbito imediato, poderão recebê-las num futuro não muito distante, convidando-lhes para uma defesa de dissertação.
Rodrigo da Rosa, novembro de 2014

COMENTÁRIOS: Enviar para franzrosa@hotmail.com
 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A PATOLOGIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

    O alto índice de fracasso escolar no Brasil deve-se a muitos fatores. A escola anacrônica, os problemas sociais, a apressada massificação da educação e a insubstancial formação dos educadores apresentam-se como questões de relevância incontestável.  
É evidente que a escola atual não é atrativa para os alunos. Talvez nunca tenha sido, mas é evidente que a sociedade disciplinar caiu e tomou seu lugar a sociedade líquida. Não há como disciplinar os corpos. Não há mais espaço para isso. E, devido à publicidade focada no público jovem, eles se sentem empoderados, sua subjetividade é forjada com fantasias de consumo e poder. O antigo mestre, rígido e severo, a antiga escola, disciplinar e autoritária, são desconstruídos facilmente pelo desdém juvenil e pela fragilidade dos papéis hierárquicos.
       Por outro lado, a escola pública torna-se a grande acolhedora das classes sociais menos privilegiadas. Havendo nessa classe, supostamente, maior probabilidade de situação de risco e carência de serviços básicos como saneamento, saúde, nutrição e lazer.
     Também acrescente-se que no Brasil a massificação da educação ocorre muito tarde, entre 1980 e 1990, processo ainda incompleto hoje. Assim, uma grande massa populacional, sem “cultura escolar”, passa a ser disciplinada nas escolas públicas. Processo que parece ser mais tortuoso devido a essa ausência de “cultura estudantil” nas famílias.
        Os profissionais da educação, por sua parte, atuantes nas escolas públicas, são, em grande parte, formados em instituições ainda com fragilidade acadêmica. Com uma formação frágil, torna-se mais difícil sanar todas as dificuldades acima listadas.

           Dito isso, muitas são as causas do fracasso escolar no Brasil. Encontrar uma solução médica parece ser um caminho mais seguro do que enfrentar todas as questões postas acima, as quais necessitariam de décadas para serem superadas. Acrescente-se que o médico não perdeu o prestígio que o professor nem mesmo viu passar. Assim, se o doutor disse, está dito, não há com o que se preocupar.
        Refiro-me aos Distúrbios de aprendizagem ou aos Transtornos de aprendizagem, tão em voga atualmente. A professora Cecília Azevedo Lima Collares questiona se, ao invés de problemas de aprendizagem, esses alunos não teriam sofrido problemas de ensinagem?

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

OS SALVADORES DA PÁTRIA



            
Nesta semana, encararam-nos como “salvadores da pátria”.  A mim e a minha companheira de trabalho, a Carol.

Ou salvadores da pátria ou santos milagreiros, foi com essa impressão que nos olharam. Simplesmente porque, uma menina que supostamente era cadeirante, passou a caminhar.

Caminhou dando-nos as mãos. Alegria, por descobrir suas pernas. Alegria, por poder mover-se com novas sensações. Observando sua alegria, pensei: estou no lugar certo, na hora certa, e isto se chama felicidade.

Nossa alunazinha tem oito anos. Franzina, mas de mãos grandes – de tanto exercitá-las para deslocar-se girando as rodas de sua cadeira.

Por que estava na cadeira de rodas, já que andava? Não sabemos.

Podemos levantar muitas falsas hipóteses e até mesmo culpar a família. Mas ninguém tem culpa. Ninguém é o culpado por algo, como mal desenvolvimento de uma criança. Faltou informação, conhecimento. Esta parece ser a resposta certeira.

Tiramo-la da cadeira porque o enfermeiro, que foi visitá-la em casa, disse-me que ela “não é cadeirante”. Apenas disse-me isso, com insatisfação na voz. E então fui comprovar sua fala. De fato, a mocinha anda, ainda que com dificuldade.

Mas a verdade é que estava “amarrada” na cadeira. Usava um colete para o tronco, que impede quedas. Mas ela tem controle do tronco. Não necessitaria nada disso. Apenas para estar “amarrada”. Que triste. Isto é superproteção?

E a menina caminhou e todos nos olharam espantados. A professora disse que não dava, que ela não deveria permanecer fora da cadeira porque poderia cair. As crianças caem, eu respondi. “Mas ela pode se machucar”. As crianças se machucam, respondi. Isso é normal. Anormal é deixar a pequena amarrada numa cadeira!

Com esse episódio levantei uma reflexão. A menininha não caminhava, nem mesmo reclamava por estar na cadeira porque certamente não sabia que podia caminhar. Tal como um elefante, que é amarrado desde jovem e quando adolesce crê deveras que a corda é inquebrantável, embora já tenha força para rompê-la.

Assim também seremos nós. Temos potencialidades que, por ignorância, cremos que não as possuímos. Estou certo disso. Falsas crenças nos amarram, atrofiam nossas pernas. Velhos conceitos nos impedem de avançar e conhecer novas alegrias.

Mas, afinal, quem nos pegará pela mão para mostrar o que podemos?

Rodrigo da Rosa, outubro de 2014

 

 



Comentários, enviar para: franzrosa@hotmail.com

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ENSINA-ME



Hoje novamente visito meu aluno, o R, para mais uma aula de espanhol. Esta é a língua que ele ama, a que lhe dá alegria. É o que vou lhe ensinar, se é que posso dizer assim. Formalmente sou o professor, mas, na verdade, eu é que sou o aluno. Ele é quem me ensina; o privilégio é meu o de tê-lo como professor. Explico-me.

R não movimenta os braços, nem as pernas, nem os dedos, nem o pescoço. De sua traqueia alça-se um ducto para ventilação mecânica. Está assim há dois anos devido a uma infecção rara na coluna cervical. É uma doçura de menino, apesar do duro fardo. Digo doçura, porque o tenho ganhado com meu espanhol neo argentino. Não procura agradar. Nunca procurou. Nem procura a compaixão. Sorri, atencioso, para o que lhe interessa. Parece ser seu maior deleite, essa língua ibérica. Existem coincidências do destino. R ama a língua do reino de castela, e, por coincidência, leciono o idioma. R é aluno do Ensino Fundamental, no qual, no Município de São Paulo, não consta língua espanhola no currículo. Que importa? A sede de aprender é superior aos currículos. E o destino nos atraiu, para mútuo aprendizado.

Mas que memória! Que concentração para com o que ama! Certamente seu amor à língua vem de sua fixação por um grupo musical juvenil mexicano. Sabe de cor todas as letras.

Deitado, sem se lamentar, com a voz por vezes embargada devido ao ar escasso, lépido em sua curiosidade, concentra-se na tarefa, entrega-se a ela, esquece o transitório corpo.

Ensino-lhe vocabulário e estruturas que memorizei e internalizei. Ele ensina-me sendo quem é. Ensina-me com sua serenidade, com sua paciência. Ensina-me quando sorri. Porque sorri, ensina-me.

Perguntei-lhe sobre seu maior desejo . “Sair da cama”, disse-me e riu.

- E depois? Tornei a perguntar.

- Ir à escola.

- E depois?

- Ir à igreja.

- Gostas de ir à igreja?

- Gosto. E encerrou o assunto.

Na verdade, eu queria que me dissesse “O que mais queria era escrever um livro”. Mas não o disse. Encerrou o assunto fugindo às sentimentalidades. Espanhol era o que lhe interessava, ora.

Ele me ensina. Com sua resignação. Com sua vontade de aprender. Com sua paz.

Rodrigo da Rosa, outubro de 2014 
COMENTÁRIOS: enviar para franzrosa@hotmail.com  

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vive dentro de mim

Vive dentro de mim
Homem roçador,
bem madrugador,
bem rezador

Vive dentro de mim
um pedreiro,
sim senhor
de força pro trabalho
sem descanso
de lata de massa no ombro.

Vive dentro de mim
o gineteador dos pampas,
em veloz galope,
crinas eriçadas,
de peleia com os bugre.
Tropeiro timorato,
o fogaréu a aberto céu,
o charque à brasa,
o mate amargo sob o pelego.

Vive dentro de mim
o cigano
festeiro,
sem paradeiro,
no rumo dos seus sonhos,
Sobranceiro,
Cantador,
encantador.

Vive também um menino,
pequeno príncipe,
sonhador e sublime,
em seu mundo lunar,
vivendo nas histórias
de sua imaginação,
amigo dos passarinhos,
solidário ao seu irmão.
RODRIGO DA ROSA

Comentários: enviar para franzrosa@hotmail.com

VOCABULÁRIO

Gineteador: sm 1 Homem que anda a cavalo; indivíduo que sabe e costuma andar a cavalo.


pampa
pam.pa
sm (quíchua pampa) 1 Planície muito extensa, coberta de vegetação rasteira, na região meridional da América do Sul, especialmente Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai.


eriçado
e.ri.ça.do
adj (part de eriçar) Que se eriçou; arrepiado, encrespado, ouriçado.

Peleia: briga, luta.

Bugre: indígenas

Tropeiro
tro.pei.ro
sm (tropa+eiro) 1 O que conduz uma tropa, acepções 5 e 6. 2 Aquele que conduz bestas de carga ou manadas de gado grosso, como cavalos e bois.


timorato
ti.mo.ra.to
adj (lat timoratu) 1 Medroso por escrúpulo, ou pelo excessivo temor de Deus. 2 Que receia errar. 3 Acanhado, hesitante. 4 Escrupuloso


pelego
pe.le.go
(ê) sm 1 Pele de carneiro com a lã, usada sobre a montaria, para amaciar o assento


sobranceiro1
so.bran.cei.ro1
adj (baixo-lat superantia+eiro) 1 Que fica superior a outro; dominante; elevado; proeminente. 2 Que olha ou vê de mais alto; que encara as coisas com superioridade de vistas. 3 Que se destaca vantajosamente de outrem ou de outra coisa. 4 Que tem o ânimo forte para resistir aos reveses da vida. 5 Altivo, arrogante, desdenhoso, orgulhoso.

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
 uma cabocla velha de mau olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
macumba, ferreiro.
Ogã, pai-de-santo…

Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho,
  seu cheiro gostoso d’água e sabão.
  Rodilhada de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim a mulher roceira.
Enxerto da terra, meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida - a vida mera das obscuras.

CORA CORALINA

Vocabulário
borralho bor.ra.lho sm (borra+alho2) 1 Brasido quase extinto e coberto de cinzas quentes. 2 Cinzas quentes.

Acocorar: vpr 3 Abaixar-se, agachar-se, encolher-se, pôr-se de cócoras

quebranto que.bran.to sm (der regressiva de quebrantar) 1 Suposto estado mórbido que se diz produzido pelo mau-olhado de certas pessoas, nas crianças, nos animais, nas plantas e até nos alimentos; mau-olhado. 2 Abatimento, desânimo, fadiga. 3 poét Desfalecimento, prostração.

Ogum O.gum sm (ioruba Ògún) Folc 1 Filho de Iemanjá; orixá poderoso, lutador, guerreiro; divindade prestigiosa nas macumbas do Rio de Janeiro e nos candomblés baianos. 2 Na macumba, um espírito de raça branca encarnado em São Jorge. O. de cariri, Reg (Bahia): Forma equivalente a Santo Antônio das Matas. O. de ronda, Reg (Bahia): Forma equivalente a Santo Antônio da Barra.

rodilha ro.di.lha sf (roda1+ilha2) 1 Esfregão ou trapo, para fazer limpeza nas cozinhas. 2 Rosca de pano em que se assenta a carga na cabeça. picumã pi.cu.mã sm (tupi apekumã) 1 Fuligem. 2 Teias de aranha enegrecidas pela fuligem.

Proletário Classe proletária. sm 1 Cidadão pobre, da última classe do povo, isento de imposto, que, entre os romanos, só era considerado como útil pelos filhos que tinha.

domingo, 27 de julho de 2014

Encontro com indígenas Escrevi no último texto sobre a importância dos encontros humanos. Dessa vez, por coincidência, relato um encontro singular. Na praça principal do centro histórico de Paraty- RJ, deparo-me com dois miúdos, de traços indianados muito fortes. Estava com o violão na mão, ensaiando umas bossas pra projetos futuros e resolvi aproximar-me utilizando-me da linguagem universal, a música. Mas minha música não lhes atraía. O que queriam mesmo era brincar com as pedrinhas da praça, fazendo todo tipo de jogo com elas. Troquei algumas palavras e logo percebi que não entendiam português e sim falavam uma bela língua indígena. Comecei então a interagir utilizando-me das pedrinhas e então consegui alguma troca. Pouco depois cansaram-se os indiozinhos de brincar e foram pedir dinheiro às pessoas da praça. Olhei à volta para ver se notava algum astuto vilão, aquele que coloca a criança para esmolar, valendo-se de sua aparência frágil e terna para ganhar dinheiro. Não encontrei ninguém, mas sabia que estavam por perto. Levantei algumas reflexões sobre os indígenas após esse encontro. Gostaria primeiramente de saber como hoje veem os portugueses aos indígenas, que tipo de imagem lhes chega, o que pensam, como se relacionam com isso. Tenho que afirmar que nós, brasileiros, nos perguntamos, “quem são eles?” exceto os especialistas, nós da cidade grande não conseguimos distinguir uma nação de outra, e são mais de duzentas em território nacional. A triste verdade é que os indígenas são “o outro” em nossa sociedade, assim como se faz com o pobre. Não lhes foi dado valor. E que grande valor não possuem, com sua riqueza linguística, sua arte, seu modus vivendi que convive harmoniosamente com a natureza, tão caro nos nossos dias. Voltando à praça de Paraty, após brincar com eles chega-me uma outra criança (esta que aparece na foto). Ele chega cheia de encantamento, querendo brincar com as pedrinhas e se relacionar com as crianças. Eu olhar encantado e sua intenção não duram 1 minuto, pois logo vem o seu pai para tirá-la abruptamente desse convívio, dessa experiência, desse contato enriquecedor. A atitude desse pai parece sintetizar o modo com que nos relacionamos com os indígenas. Não educamos nossas crianças para conhecê-los, amá-los, considerá-los . Eles são um outro, um estranho, que queremos negar e nunca integrar. Trago a recordação daqueles olhos infantis e de sua bela língua. Que possamos aprender com eles e amá-los tal como a criancinha, que com encantamento foi brincar e desfrutar da praça e de suas pedrinhas. Em breve vou visitar uma tribo no litoral de São Paulo e na zona Sul da cidade de São Paulo, com a intenção de compreender um pouco mais desse povo que constitui nossa essência, mas que no entanto negamos e esquecemos.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um tapa da cara!

Um tapa na cara ao ler a revista REAÇÂO – Revista Nacional de Reabilitação. Com o subtítulo: Inclusão e acessibilidade de pessoas com deficiência, mobilidade reduzida, familiares e profissionais do setor. Pra começar, no editorial, uma mensagem de otimismo enaltecendo os novos heróis nacionais, os atletas paraolímpicos (assim mesmo, com a letra o, por decreto da Dilma, graças a Deus). Quem não se emocionou ao assistir a uma competição paraolímpica? Em seguida, a revista traz uma série de reportagens de tirar o fôlego. A emoção toma a conta da gente: são tantos os exemplos de superação, tanta gente lutando por um mundo mais igualitário, e tanta gente batalhando pra simplesmente conseguir locomover-se ou aliviar as dores e enfermidades decorrentes do uso de cadeira de rodas! Um verdadeiro tapa na cara! Destaco a biografia de Bonnie Lewkowicz, uma bailarina estadounidense cadeirante que se especializou em turismo e viagens acessíveis. Recentemente participou de um espetáculo de dança e na revista há fotos tocantes. Quanto vontade de viver e de trabalhar, não é mesmo? Outro tapa na cara! A Universidade Federal de Pernambuco desenvolveu um aplicativo gratuito que traduz Português para Libras. O aplicativo reconhece a voz do usuário e traduz a fala para Libras. Outro fato que me emocionou: as pessoas dedicarem seu tempo, seu trabalho, pra desenvolver algo para beneficiar e facilitar (nesse caso, algo fundamental!) a vida de pessoas com deficiência. Mais um tapa na cara bem dado! O que eu tenho desenvolvido para o bem do próximo? Quanto de meu tempo tenho dedicado para criar algo que possa facilitar ou melhorar a vida dos outros? Por fim, um texto sobre voluntariado...e voluntariado na AACD. Aquela que ora ou outra vemos uma propaganda, achamos bonito e tal, mas quem vai lá ajudar? Tapas deveras. E lá estavam as publicidades pro público com deficiência. A modelo Renata Paiva, também deficiente, posa sentada sobre cadeira de rodas dobrável. Lisiane Siqueira, estudante de direito e cadeirante, atua em propaganda da Ortobras, empresa voltada para a acessibilidade. Com expressão feliz, Lisiane olha para o céu, sobre cadeira de rodas acima de deck imenso, cercado por árvores. Na paisagem figura sua frase: “Nada é por acaso. Se isso aconteceu, foi pra eu me tornar uma pessoa melhor. Foi pra mostrar que, quando a gente quer alguma coisa, consegue de qualquer jeito”. Em que mundo, nós, os aparentemente normais, pensamos viver? Nossa cultura hedonista, consumista, materialista, “não tem tempo” para os desprivilegiados, para os necessitados de toda ordem. É preciso que criemos uma cultura mais fraterna, que ampara e se dedica aos desprivilegiados. É esse novo modo de viver que dará sentido à nossa vida. Somente essa vida, a que se multiplica para os outros, que ampara, que assiste, que semeia, é a que realmente vale a pena ser vivida.