quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ENSINA-ME



Hoje novamente visito meu aluno, o R, para mais uma aula de espanhol. Esta é a língua que ele ama, a que lhe dá alegria. É o que vou lhe ensinar, se é que posso dizer assim. Formalmente sou o professor, mas, na verdade, eu é que sou o aluno. Ele é quem me ensina; o privilégio é meu o de tê-lo como professor. Explico-me.

R não movimenta os braços, nem as pernas, nem os dedos, nem o pescoço. De sua traqueia alça-se um ducto para ventilação mecânica. Está assim há dois anos devido a uma infecção rara na coluna cervical. É uma doçura de menino, apesar do duro fardo. Digo doçura, porque o tenho ganhado com meu espanhol neo argentino. Não procura agradar. Nunca procurou. Nem procura a compaixão. Sorri, atencioso, para o que lhe interessa. Parece ser seu maior deleite, essa língua ibérica. Existem coincidências do destino. R ama a língua do reino de castela, e, por coincidência, leciono o idioma. R é aluno do Ensino Fundamental, no qual, no Município de São Paulo, não consta língua espanhola no currículo. Que importa? A sede de aprender é superior aos currículos. E o destino nos atraiu, para mútuo aprendizado.

Mas que memória! Que concentração para com o que ama! Certamente seu amor à língua vem de sua fixação por um grupo musical juvenil mexicano. Sabe de cor todas as letras.

Deitado, sem se lamentar, com a voz por vezes embargada devido ao ar escasso, lépido em sua curiosidade, concentra-se na tarefa, entrega-se a ela, esquece o transitório corpo.

Ensino-lhe vocabulário e estruturas que memorizei e internalizei. Ele ensina-me sendo quem é. Ensina-me com sua serenidade, com sua paciência. Ensina-me quando sorri. Porque sorri, ensina-me.

Perguntei-lhe sobre seu maior desejo . “Sair da cama”, disse-me e riu.

- E depois? Tornei a perguntar.

- Ir à escola.

- E depois?

- Ir à igreja.

- Gostas de ir à igreja?

- Gosto. E encerrou o assunto.

Na verdade, eu queria que me dissesse “O que mais queria era escrever um livro”. Mas não o disse. Encerrou o assunto fugindo às sentimentalidades. Espanhol era o que lhe interessava, ora.

Ele me ensina. Com sua resignação. Com sua vontade de aprender. Com sua paz.

Rodrigo da Rosa, outubro de 2014 
COMENTÁRIOS: enviar para franzrosa@hotmail.com  

3 comentários:

  1. Querido Amigo:
    Que privilégio ser professor de um aluno assim. Que privilégio ter um professor como tu!
    Forte abraço aos dois.
    João Luís

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  2. Olá Rô,

    Texto lindo como sempre querido!

    Que bom que voltou a escrever

    Márcia

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